Por Uma Pátria em Liquidação: A Black Friday da República

Tempo de leitura: 5 min

Escrito por jotarchangelo

Tento reviver os fatos, ideias e ideais que me incendiavam a alma há quase cinquenta anos.

Lembro-me (e reverencio) Lourenço Diaféria, que disse não gostar de heróis, líderes, santos e mitos. Não que estes não tenham o seu valor. Nem é que o legado deixado por tais heróis, santos e mitos não seja relevante para a sociedade. Ele não gostava de exageros, lendas e relatos hiperbolizados de suas virtudes, muitas delas criadas e exaltadas para tantos (e às vezes não tão nobres) propósitos.

Muitos nomes de praças e ruas neste país têm nomes desses heróis, santos e mitos. Concordo com Lourenço Diaféria. Começando com Dom Pedro I, que declarou a independência do Brasil – em 7 de setembro de 1822 – até hoje, o Brasil passou por nove Golpes de Estado, apoiados por líderes de grupos de elite e com o apoio estratégico e bélico dos militares.

O Brasil já começou desalinhado e torto. Dom Pedro I – ainda Príncipe Regente – convoca uma Assembleia Constituinte em 3 de junho de 1822, poucos meses antes de se tornar uma nação independente. Este documento constitucional consolidou alguns princípios mórbidos de discriminação e desigualdade. Quais?

Primeiro, porque neste documento constitucional apenas teria direito a voto quem tivesse renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca. A constituição demonstrou e reforçou o poder e o interesse da elite agrária e excluiu outros membros da sociedade da época. Segundo, porque a elite agrária queria, e o documento constitucional o confirmava, a preservação do trabalho escravo e a responsabilidade do governo no cuidado da mão de obra escrava.

Nasceu uma nova nação com os velhos e inaceitáveis ​​privilégios de uma pequena oligarquia e legalizando a exclusão e a injustiça. Um ano depois – 12 de novembro de 1823 – Dom Pedro I, com o apoio do exército, distanciou-se da Assembleia Constituinte. Ficou conhecida como a Noite da Agonia. Foi o segundo golpe. E a agonia popular continua até hoje.

As elites agrárias se impunham saqueando riquezas de todos os habitantes do Brasil da época. Proliferavam líderes, heróis, santos e mitos da época. Nem tanto. Somente aqueles que apoiavam os interesses e o poder das oligarquias do reino. Concordo com Lourenço Diaféria. Também não gosto desse tipo fabricado, esculpido e manipulado de líderes, heróis, santos e mitos. São muito baratos, têm pouco preço, apreço e valor.

Aqueles que queriam a inclusão e a justiça eram criminalizados, condenados, torturados, chacinados e desapareciam da memória histórica. Ou permaneciam com roupagens de bandidos e inimigos da nação. Que o diga o massacre na chacina de Canudos.

Com pouco mais de um ano de vida, a nova nação do Brasil já conhecia dois golpes de Estado.

O feriado de hoje incorpora o terceiro. Em 15 de novembro de 1889, por meio de um golpe de Estado apoiado por militares e republicanos interessados ​​em preservar seus privilégios econômicos, um regime republicano foi instaurado no Brasil. Marechal Deodoro da Fonseca é o líder-herói-mito de plantão dessa data.

Confirma-se, no golpe da proclamação da república, o rateio das riquezas do país nas mãos de poucos, nas mãos de uma elite econômica garantida pela força repressiva do estado em seu braço militar.

Talvez o leitor pense que tenha aversão aos militares. Toda unanimidade é tola, disse Nelson Rodrigues. Nada pode ser generalizado de antemão.

Retomo meus sentimentos, ideias e ideais que me incendiavam a alma há 47 anos. Lourenço Diaféria escrevia: “Para mim, o herói – como o santo – é aquele que vive sua vida até as últimas consequências. O herói redime a humanidade à deriva”.

Ele se referia a um verdadeiro herói/santo, militar humilde e silencioso: Sargento Sílvio Hollenbach, que no dia 27 de agosto de 1977 não pensou duas vezes: viu um garoto de 13 anos caindo num poço de ariranhas e sendo atacado por elas. Não titubeou: pulou dentro do poço, salvando o menino. Foi violentamente atacado pelas ariranhas no zoológico de Brasília. Socorrido e encaminhado ao hospital, não resistiu aos ferimentos e veio a falecer alguns dias depois.

Lourenço Diaféria escrevia nessa data: “Esse sargento Silvio podia estar vivo com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria sendo capitão, major ou teria outra patente maior. Está morto. Um belíssimo sargento morto. E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói […]”

Muitos monumentos colocam seus heróis/mitos/santos em estátuas de bronze. A rigidez do bronze oxidou também o coração e a alma das pessoas. Não se querem mais estátuas de cavalos e espadas erguidas testemunhando a bestialidade da força e da violência. O povo rejeita o herói fabricado, rígido, irretocável e irretorquível, de corpos e almas duros e frios como bronze, incapazes de amar e de um mínimo sentimento de empatia.

O povo – quero crer – não almeja o herói/líder/santo/mito que se apoia no poder constituído para tirar as riquezas da nação e apropriar-se delas como patrimônio pessoal. O povo quer o herói simples e com coração humano que “[… dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos]”. Assim como viveu o Sargento Silvio Hollenbach.

Não se quer o líder que “mete a mão”, mas aquele que estende as mãos. Assim como o fez o Sargento Silvio Hollenbach.

As pessoas – quero acreditar – anseiam por heróis que ensinem que todos somos responsáveis ​​pelos espinhos que ferem a pele de qualquer pessoa.

Como diz o Papa Francisco, são os “Santos ao pé da porta, sentados no degrau da varanda, afagando filhos e netos”. São humildes, pobres e invisíveis. Não querem holofotes. Querem apenas amar e afagar com ternura as novas gerações.

Sargento Sílvio Hollenbach, apenas um homem que, quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, balbuciou com dificuldade que não poderia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo – e eu também – prefere esses heróis: de carne, ossos e sangue. Não os fabricados, insensíveis, rígidos e oxidados. Não! No dia da Proclamação da República, quero enaltecer os verdadeiros heróis/líderes/santos/mitos desse país. E são muitos. Pais de família, militares, educadores, assistentes sociais e tantos outros que fazem de sua vida uma oferenda, uma oblação permanente no altar da vida, no templo infinito do cosmo, na cruz de cada irmão, no olhar terno e eterno de quem tem coração e alma. E ama de paixão.

A pátria, saqueada por tantos falsos heróis, precisa abrir-se e abrir seus olhos para ver o eloquente testemunho de humanismo e de compromisso social deixado como legado para várias gerações, como foi o legado deixado pelo memorável Sargento Silvio Hollenbach.

Que aprendamos que heróis/líderes/santos/mitos não são aqueles que metem a mão no patrimônio público, mas aqueles capazes de estender sua mão a quem necessite.

E que esta data nos faça refletir e evitar o grande remorso de uma existência: o de fazer as coisas essenciais, urgentes e inadiáveis – tarde demais.

Autor: José Archangelo Depizzol

15/11/2024

Para enviar seu comentário, preencha os campos abaixo:

Deixe um comentário


*


*


Seja o primeiro a comentar!

Damos valor à sua privacidade

Nós e os nossos parceiros armazenamos ou acedemos a informações dos dispositivos, tais como cookies, e processamos dados pessoais, tais como identificadores exclusivos e informações padrão enviadas pelos dispositivos, para as finalidades descritas abaixo. Poderá clicar para consentir o processamento por nossa parte e pela parte dos nossos parceiros para tais finalidades. Em alternativa, poderá clicar para recusar o consentimento, ou aceder a informações mais pormenorizadas e alterar as suas preferências antes de dar consentimento. As suas preferências serão aplicadas apenas a este website.

Cookies estritamente necessários

Estes cookies são necessários para que o website funcione e não podem ser desligados nos nossos sistemas. Normalmente, eles só são configurados em resposta a ações levadas a cabo por si e que correspondem a uma solicitação de serviços, tais como definir as suas preferências de privacidade, iniciar sessão ou preencher formulários. Pode configurar o seu navegador para bloquear ou alertá-lo(a) sobre esses cookies, mas algumas partes do website não funcionarão. Estes cookies não armazenam qualquer informação pessoal identificável.

Cookies de desempenho

Estes cookies permitem-nos contar visitas e fontes de tráfego, para que possamos medir e melhorar o desempenho do nosso website. Eles ajudam-nos a saber quais são as páginas mais e menos populares e a ver como os visitantes se movimentam pelo website. Todas as informações recolhidas por estes cookies são agregadas e, por conseguinte, anónimas. Se não permitir estes cookies, não saberemos quando visitou o nosso site.

Cookies de funcionalidade

Estes cookies permitem que o site forneça uma funcionalidade e personalização melhoradas. Podem ser estabelecidos por nós ou por fornecedores externos cujos serviços adicionámos às nossas páginas. Se não permitir estes cookies algumas destas funcionalidades, ou mesmo todas, podem não atuar corretamente.

Cookies de publicidade

Estes cookies podem ser estabelecidos através do nosso site pelos nossos parceiros de publicidade. Podem ser usados por essas empresas para construir um perfil sobre os seus interesses e mostrar-lhe anúncios relevantes em outros websites. Eles não armazenam diretamente informações pessoais, mas são baseados na identificação exclusiva do seu navegador e dispositivo de internet. Se não permitir estes cookies, terá menos publicidade direcionada.

Visite as nossas páginas de Políticas de privacidade e Termos e condições.