
Tento reviver os fatos, ideias e ideais que me incendiavam a alma há quase cinquenta anos.
Lembro-me (e reverencio) Lourenço Diaféria, que disse não gostar de heróis, líderes, santos e mitos. Não que estes não tenham o seu valor. Nem é que o legado deixado por tais heróis, santos e mitos não seja relevante para a sociedade. Ele não gostava de exageros, lendas e relatos hiperbolizados de suas virtudes, muitas delas criadas e exaltadas para tantos (e às vezes não tão nobres) propósitos.
Muitos nomes de praças e ruas neste país têm nomes desses heróis, santos e mitos. Concordo com Lourenço Diaféria. Começando com Dom Pedro I, que declarou a independência do Brasil – em 7 de setembro de 1822 – até hoje, o Brasil passou por nove Golpes de Estado, apoiados por líderes de grupos de elite e com o apoio estratégico e bélico dos militares.
O Brasil já começou desalinhado e torto. Dom Pedro I – ainda Príncipe Regente – convoca uma Assembleia Constituinte em 3 de junho de 1822, poucos meses antes de se tornar uma nação independente. Este documento constitucional consolidou alguns princípios mórbidos de discriminação e desigualdade. Quais?
Primeiro, porque neste documento constitucional apenas teria direito a voto quem tivesse renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca. A constituição demonstrou e reforçou o poder e o interesse da elite agrária e excluiu outros membros da sociedade da época. Segundo, porque a elite agrária queria, e o documento constitucional o confirmava, a preservação do trabalho escravo e a responsabilidade do governo no cuidado da mão de obra escrava.
Nasceu uma nova nação com os velhos e inaceitáveis privilégios de uma pequena oligarquia e legalizando a exclusão e a injustiça. Um ano depois – 12 de novembro de 1823 – Dom Pedro I, com o apoio do exército, distanciou-se da Assembleia Constituinte. Ficou conhecida como a Noite da Agonia. Foi o segundo golpe. E a agonia popular continua até hoje.
As elites agrárias se impunham saqueando riquezas de todos os habitantes do Brasil da época. Proliferavam líderes, heróis, santos e mitos da época. Nem tanto. Somente aqueles que apoiavam os interesses e o poder das oligarquias do reino. Concordo com Lourenço Diaféria. Também não gosto desse tipo fabricado, esculpido e manipulado de líderes, heróis, santos e mitos. São muito baratos, têm pouco preço, apreço e valor.
Aqueles que queriam a inclusão e a justiça eram criminalizados, condenados, torturados, chacinados e desapareciam da memória histórica. Ou permaneciam com roupagens de bandidos e inimigos da nação. Que o diga o massacre na chacina de Canudos.
Com pouco mais de um ano de vida, a nova nação do Brasil já conhecia dois golpes de Estado.
O feriado de hoje incorpora o terceiro. Em 15 de novembro de 1889, por meio de um golpe de Estado apoiado por militares e republicanos interessados em preservar seus privilégios econômicos, um regime republicano foi instaurado no Brasil. Marechal Deodoro da Fonseca é o líder-herói-mito de plantão dessa data.
Confirma-se, no golpe da proclamação da república, o rateio das riquezas do país nas mãos de poucos, nas mãos de uma elite econômica garantida pela força repressiva do estado em seu braço militar.
Talvez o leitor pense que tenha aversão aos militares. Toda unanimidade é tola, disse Nelson Rodrigues. Nada pode ser generalizado de antemão.
Retomo meus sentimentos, ideias e ideais que me incendiavam a alma há 47 anos. Lourenço Diaféria escrevia: “Para mim, o herói – como o santo – é aquele que vive sua vida até as últimas consequências. O herói redime a humanidade à deriva”.
Ele se referia a um verdadeiro herói/santo, militar humilde e silencioso: Sargento Sílvio Hollenbach, que no dia 27 de agosto de 1977 não pensou duas vezes: viu um garoto de 13 anos caindo num poço de ariranhas e sendo atacado por elas. Não titubeou: pulou dentro do poço, salvando o menino. Foi violentamente atacado pelas ariranhas no zoológico de Brasília. Socorrido e encaminhado ao hospital, não resistiu aos ferimentos e veio a falecer alguns dias depois.
Lourenço Diaféria escrevia nessa data: “Esse sargento Silvio podia estar vivo com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria sendo capitão, major ou teria outra patente maior. Está morto. Um belíssimo sargento morto. E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói […]”
Muitos monumentos colocam seus heróis/mitos/santos em estátuas de bronze. A rigidez do bronze oxidou também o coração e a alma das pessoas. Não se querem mais estátuas de cavalos e espadas erguidas testemunhando a bestialidade da força e da violência. O povo rejeita o herói fabricado, rígido, irretocável e irretorquível, de corpos e almas duros e frios como bronze, incapazes de amar e de um mínimo sentimento de empatia.
O povo – quero crer – não almeja o herói/líder/santo/mito que se apoia no poder constituído para tirar as riquezas da nação e apropriar-se delas como patrimônio pessoal. O povo quer o herói simples e com coração humano que “[… dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos]”. Assim como viveu o Sargento Silvio Hollenbach.
Não se quer o líder que “mete a mão”, mas aquele que estende as mãos. Assim como o fez o Sargento Silvio Hollenbach.
As pessoas – quero acreditar – anseiam por heróis que ensinem que todos somos responsáveis pelos espinhos que ferem a pele de qualquer pessoa.
Como diz o Papa Francisco, são os “Santos ao pé da porta, sentados no degrau da varanda, afagando filhos e netos”. São humildes, pobres e invisíveis. Não querem holofotes. Querem apenas amar e afagar com ternura as novas gerações.
Sargento Sílvio Hollenbach, apenas um homem que, quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, balbuciou com dificuldade que não poderia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo – e eu também – prefere esses heróis: de carne, ossos e sangue. Não os fabricados, insensíveis, rígidos e oxidados. Não! No dia da Proclamação da República, quero enaltecer os verdadeiros heróis/líderes/santos/mitos desse país. E são muitos. Pais de família, militares, educadores, assistentes sociais e tantos outros que fazem de sua vida uma oferenda, uma oblação permanente no altar da vida, no templo infinito do cosmo, na cruz de cada irmão, no olhar terno e eterno de quem tem coração e alma. E ama de paixão.
A pátria, saqueada por tantos falsos heróis, precisa abrir-se e abrir seus olhos para ver o eloquente testemunho de humanismo e de compromisso social deixado como legado para várias gerações, como foi o legado deixado pelo memorável Sargento Silvio Hollenbach.
Que aprendamos que heróis/líderes/santos/mitos não são aqueles que metem a mão no patrimônio público, mas aqueles capazes de estender sua mão a quem necessite.
E que esta data nos faça refletir e evitar o grande remorso de uma existência: o de fazer as coisas essenciais, urgentes e inadiáveis – tarde demais.
Autor: José Archangelo Depizzol
15/11/2024
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